© Arquivo pessoal Enfermeiro intensivista que trata de pacientes com covid-19 contraiu doença e acabou internado na mesma UTI onde trabalha
Marcos estava internado na UTI onde ele mesmo havia trabalhado dias antes. Do seu leito, via colegas e amigos cuidando dele e de outros pacientes com covid-19, a doença causada pelo coronavírus.
Enfermeiro intensivista, como são chamados os profissionais das unidades de terapia intensiva (UTIs), ele havia contraído coronavírus depois de cuidar de pacientes em estado grave, então sabia o que estava acontecendo com seu corpo e o que ainda poderia acontecer.
"O que assusta é estar internado sabendo da gravidade a que poderia chegar. Como eu tinha conhecimento, fiquei assombrado", diz. "Estava no limite entre a melhora e a piora. E sabia que a piora tinha um prognóstico negativo demais."
Mas como havia chegado até ali?
Marcos Evangelista, 46 anos, passou os últimos 14 trabalhando no Hospital São Paulo, na capital do Estado, hospital de referência da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), onde também ficou internado quando contraiu coronavírus.
Desde os 18 anos, trabalha com enfermagem, seguindo a mãe como exemplo. "A enfermagem está na raiz da família. Minha mãe se aposentou como auxiliar de enfermagem pela Santa Casa, em São Paulo. Quando eu era pequeno, tinha essa visão da pessoa trabalhadora e lutadora que ela era, e vi nela uma realização no que fazia", afirma. Trabalhou como atendente, auxiliar e técnico de enfermagem até fazer faculdade e pós-graduação em enfermagem.
Como muitos colegas da profissão, diz que até hoje nunca tinha visto algo como o coronavírus. "Parece que quando soltaram os fogos no Ano Novo, o relógio começou a andar para trás. Não existe mais outra coisa no hospital. Ninguém mais tem AVC, trauma de moto, infarto. O mundo resolveu caminhar só para covid."
Quando o Brasil começou a registrar os primeiros casos de coronavírus, em fevereiro, os profissionais do hospital começaram a pensar que em pouco tempo também estariam trabalhando com pacientes infectados, diz ele.
© REUTERS/Adriano Machado Enfermeira em hospital de Brasília; Marcos conta que vida de profissionais de saúde mudou porque têm que ficar com equipamento de proteção o tempo todo, evitando intervalos para não desperdiçar material
"Eu via muito vídeo na internet [de outros hospitais com pacientes com coronavírus]. Mas quando você vê na realidade, é traumatizante. Mexe com seu psicológico", afirma.
Pacientes começaram a chegar, e a rotina dos profissionais de saúde mudou completamente. "A assistência em si a um paciente grave é a mesma. O que muda é que é altamente transmissível", explica.
Isso significa que todos os profissionais de saúde precisam estar muito bem paramentados, criando barreiras contra a contaminação. Antes, diz Marcos, pacientes com meningite, tuberculose, entre outros, eram isolados, e os profissionais se paramentavam para entrar no isolamento - "saíam e a vida continuava".
"Agora, são várias horas seguidas com equipamento de proteção individual. Passamos a pensar: 'vou adiar beber água ou comer, vou segurar para ir ao banheiro'. Desparamentar é um custo, porque os equipamentos estão ficando escassos. Sei que o avental que eu descarto vai fazer falta depois."
Não é fácil passar o dia inteiro com a máscara N95, que filtra partículas no ar, e os profissionais ficam "hiper preocupados em coçar o olho, o nariz, o cabelo". "Fico suando no plantão, mas sem encostar no rosto, o tempo todo preocupado se quebrei alguma barreira. Muitas vezes você não se contamina, mas pode levar para os outros, para a família", diz.
Trabalhava na UTI, onde ficam os pacientes de covid-19 em estado mais grave. Também havia tido contato em alguns plantões no pronto-socorro com pacientes com coronavírus, onde chegavam com falta de ar e tosse antes da confirmação da doença. Ali, profissionais de saúde estavam menos protegidos.
Febre no plantão
Foi em um plantão noturno, do dia 26 para o 27 de março, que Marcos começou a sentir calafrios. Havia sentido dor de cabeça no dia anterior. Mediu sua temperatura: 37,8º. Também estava taquicárdico. "Até esperava que algum momento fosse me contaminar, mas não que fosse ser tão rápido. Foi um baque muito grande."
Desceu para o pronto-socorro do hospital, foi avaliado e estabeleceu-se que estava com suspeita de covid-19.
Ainda no hospital, foi fazer exame para confirmar a doença. Na sala de espera, encontrou o médico hematologista Paulo Fernando Palazzo, chefe da urgência clínica da Unifesp, também com suspeita de covid-19.
"Sentamos próximos, em uma distância segura, ele de máscara, e nos cumprimentamos. A conversa foi descontraída. Disse: 'Opa, você aqui também nessa brincadeira?", lembra.
Dias depois, o médico, também socorrista do Samu, morreu em decorrência da covid-19.
"Foi uma tragédia. Trabalhei diretamente com ele no pronto-socorro quando comecei a trabalhar no hospital. A gente brincava, trabalhava junto, ia na padaria tomar café, era colega de trabalho e amigo", conta, emocionado. "Era uma pessoa maravilhosa, espetacular, muito humana."
"Ele fez exames comigo e, quando eu vi, tinha falecido. Como ele estava conversando e bem, não estava em uma maca, foi um susto. Nós dois estávamos bem e estáveis. Hoje eu estou aqui e ele não está mais entre nós", lamenta. "É uma tragédia, dessas perdas com as quais infelizmente teremos que conviver."
Naquele momento, Marcos estava bem e estável - mas sua condição iria deteriorar nos próximos dias.
Isolamento em casa
O isolamento em casa foi completo. Marcos e sua esposa, uma médica pediatra, criaram protocolos. Ele ficou no quarto do casal, sem sair de lá, e ela foi para o quarto de uma das filhas. Marcos tem um filho de 24 anos, do primeiro casamento, que mora com a mãe. Tem também uma enteada de 22 anos e uma filha de 12.
As refeições eram deixadas na porta do quarto, com copo descartável e um prato que passou a ser só para ele, sempre lavado duas vezes com água quente. Suas roupas eram lavadas separadamente. O lixo, colocado dentro de duas sacolas plásticas. A badeja que levava a comida era limpada com álcool. Até a maçaneta, em cuja parte de fora Marcos não encostava, era desinfetada. A conversa com a família se dava por telefone.
"Sabendo da gravidade da doença e do potencial contaminante, não tinha como ser de outra forma. Tínhamos que preservar a família. Não sei como minha esposa ou filhas responderiam à doença", diz Marcos.
Com conhecimentos de quase 30 anos de enfermagem, ficava acompanhando seu próprio quadro clínico e a evolução da doença. Tinha febre todos os dias, mas tomava dipirona, tomava um banho, e a febre melhorava, apesar de voltar depois de um tempo. Uma tosse discreta foi aumentando. Além disso, começou a sentir cansaço no corpo e cansaço respiratório.
"Você não tem falta de ar, tem uma falta de força para respirar. Eu respirava com normalidade e com frequência, mas vinha um cansaço muscular respiratório. Eu tossia e vinha cansaço. Comecei a ficar muito prostrado, o tempo todo deitado. Ficava o tempo inteiro dentro do quarto, sem sair para a varanda, sem forças", relata.
Começou a perder o apetite e a parar de sentir o sabor das comidas. Sentia dor muscular generalizada.
Cinco dias depois dos primeiros sintomas, na noite do dia 31 março para o dia 1º de abril, viu que seu quadro clínico "estava complicando". O primeiro sinal de alerta foi a febre permanente, apesar da medicação e do banho frio. Depois, começou a sentir falta de ar. Com um aparelho portátil para medir a saturação de oxigênio, um oxímetro, viu que o nível estava em 88%. O normal é entre 95% a 100%. "Estava baixíssimo."
"Liguei na hora para minha esposa e pedi para ela me levar para o hospital."
Ela forrou o banco de trás do carro com um lençol, abriu as portas do carro, que ele não encostou, e ele deitou atrás, com as janelas abertas, para ventilar. Usando máscara, ela levou o marido até o hospital onde ele trabalhava.
Chegando no Hospital São Paulo, médicos viram que o índice de saturação de oxigênio de Marcos estava em 85%.
Internação e UTI
Fizeram exames de sangue e uma tomografia de seu pulmão. Marcos escutou de um dos médicos que o atendeu: "Fica tranquilo, vamos cuidar de você, você é importante para nós". "Isso me deixou muito emocionado", diz ele.
"Não foi privilégio, fizeram o que fazem com todos que são atendidos. Mas só o fato de ver colegas de trabalho preocupados com sua situação… Foi emocionante. Me senti muito bem acolhido, muito bem atendido", conta, citando e agradecendo dois médicos que o atenderam, "o Dr. Felipe, que desceu para me avaliar, e o Dr. Carlos, cardiologista que só não me deu abraço porque não poderia".
A tomografia mostrou que um quarto de seu pulmão havia sido comprometido, tomado por lesões características da covid-19.
Então, Marcos foi internado na UTI. "Eu passei por tudo o que todo mundo passa", diz. Ali, recebeu oxigênio por 48 horas, medicação para febre, Tamiflu (o remédio para H1N1), hidroxocloroquina e antibiótico. "O oxigênio me resgatou. Se eu não tivesse tido aporte de oxigênio, teria tido uma complicação severa do quadro", afirma.
Sua experiência na UTI tratando de pacientes com covid-19 lhe serviu como um alerta. No seu tempo trabalhando, diz que o que via era "assustador". "A vida inteira vi pacientes graves e gravíssimos na UTI. Mas o que eu tinha visto com covid-19 era de assustar, arrepiar. Só quem está lá dentro sabe a realidade. O nível de dificuldade respiratória é muito grave."
"Se eu piorasse, sabia que coisa seria ruim. Não sabia se veria meus filhos de novo. Quando saí de casa, vi minha filha de longe. Falei: 'um beijo, te amo, se cuida, logo o pai está aqui com você', mas eu não sabia se aquilo era uma grande verdade ou uma grande mentira que eu estava falando. Era uma palavra de consolo", conta.
"Meu grande medo era ser entubado. Quando o paciente com covid-19 é entubado, o prognóstico é muito negativo, e como eu já estava atendendo esse tipo de paciente dentro da UTI, eu já tinha visto isso. Isso assusta, você fica neurótico. É impossível não pensar nisso."
Durante seu tempo de internação, sua mulher, soube depois, chorava todos os dias. Ela ligava para seus amigos plantonistas, que lhe davam notícias por telefone.
Mas seu prognóstico acabou sendo positivo. A respiração melhorou, e depois de duas noites na UTI, foi transferido para a enfermaria, onde ficou mais dois dias. Perdeu seis quilos em oito dias, mas o pulmão começava a se recuperar.
© REUTERS/Adriano Machado Hospitais no Brasil já estão lotados de pacientes com covid-19 e saturação hospitalar pode estar próxima
Finalmente, recebeu alta, "um grande alívio", e foi para casa repousar e se reabilitar, continuando o uso das medicações.
Em casa, ainda isolado, andou dentro do quarto, tomou sol na varanda. E, 14 dias depois dos primeiros sintomas, começou a sair do quarto, ainda de máscara e sem contato com ninguém da casa, só para caminhar pelo corredor e fortalecer os músculos.
De volta ao trabalho
Só dez dias depois de receber alta da UTI, Marcos está de volta ao trabalho na mesma unidade. Voltou a pisar no hospital de novo nesta segunda (13), novamente como enfermeiro, não paciente.
Mas tudo está diferente de quando trabalhava lá. Quando ainda estava trabalhando no fim do mês de março, a UTI tinha outros pacientes que não de covid-19. Agora, todos têm a doença. "Nós brincamos: saudades do tempo em que atendíamos pacientes infartados, com AVC, ou em pós-operatório. Agora tudo foi dominado pelo coronavírus."
Hoje, diz, entra preocupado e sai preocupado, mesmo já tendo sido contaminado. "Meu medo é me recontaminar. Não existe estudo algum que mostre que não podemos nos recontaminar. Se eu contrair a doença de novo, como é que meu corpo vai responder dessa vez? Se a primeira vez foi assim, o que me garante que a segunda não será pior? Meu cuidado é redobrado."
Mas diz que o tempo que passou internado em sua UTI foi um aprendizado, porque sentiu na pele o que era ter pessoas lutando por ele, trabalhando a seu favor.
"O que todo mundo tem que ver é que o profissional, para cuidar das pessoas, está expondo sua própria vida e a vida da sua família. Eu senti as pessoas se doando, doando seu tempo, esforço, conhecimento. Desde as pessoas que me atenderam quando eu cheguei, que fizeram o raio-X do meu tórax, o médico que fez meu exame clínico, a enfermeira que me deu banho no leito… Eu estava altamente contagioso e eles estavam se expondo, se arriscando para salvar outra pessoa. Isso não tem preço. É amor."
Agora, diz, o que ele fazia antes, vai fazer "com mais gosto". "O que eu senti as pessoas fazerem por mim, vou fazer mais, melhor do que eu fazia antes."
Ele diz que o trabalho é frustrante porque vê pouca recuperação dos pacientes, e porque o futuro parece ser "sombrio".
"O mundo está sentado em um ponto de interrogação. Não existe tratamento. A hidroxicloroquina [defendida pelo presidente Jair Bolsonaro] pode ter ajudado minha melhora, mas também pode não ter ajudado. Não tem como comprovar."
Para ele, "dias ainda piores" estão por vir, porque a saturação hospitalar no Brasil está próxima.
"Mas tenho fé na humanidade. Não podemos nos desanimar", afirma. "Temos que ter esperança. Não falo como profissional de enfermagem, falo como cidadão. Se não tivermos esperança, o que vai ser de nós?"
fonte:BBC NEWS -16/04/2020 -REPRODUÇÃO
0 comentários:
Postar um comentário