Neurocientista Miguel Nicolelis é presidente do comitê científico que assessora os governadores do Nordeste no enfrentamento do novo coronavírus (Divulgação)
Parceiro do CORREIO pela Rede Nordeste, o Jornal do Comércio conversou com o neurocientista Miguel Nicolelis, presidente do comitê científico que assessora o Nordeste no enfrentamento do novo coronavírus.
Com a explosão de casos no país, o especialista diz que a decretação de lockdown é uma possibilidade absolutamente concreta neste momento.
JC Com o agravamento do número de mortos e infectados pela covid-19, Pernambuco estuda decretar lockdown. Como o senhor avalia essa possibilidade? É o momento ideal para adotar essa medida?
MIGUEL NICOLELIS - Nossas previsões (do comitê), que já tínhamos remetido ao governo de Pernambuco, mostravam essa possibilidade, com risco grande para esta semana. É uma possibilidade absolutamente concreta neste momento, mas ela tem que ser tomada pelos gestores de Pernambuco.
JC - Essas duas primeiras semanas de maio serão as mais difíceis?
NICOLELIS - As previsões dos nossos modelos mostravam, sim, que essas duas primeiras semanas do mês de maio seriam o começo do período realmente mais difícil. Tanto é que, na semana passada, eu fiz uma alerta em relação a Sergipe sobre a possibilidade de redução de isolamento social e o governador de Sergipe viu a gravidade da situação e decidiu revogar o decreto. A possibilidade de lockdown tem sido discutida desde o início da crise, visto que foi um instrumento usado em vários lugares do mundo. Primeiro na China, depois na Itália e na Espanha. Então, essa possibilidade sempre esteve em nossas mentes. Nós estamos preparando um boletim e vamos ter essa discussão nesta segunda (04) e terça-feira (05) para ter uma recomendação com critérios quantitativos. Quais são os critérios mais básicos que levariam um governo ou gestor a decretar lockdown? Pode ser numa cidade, em sub-regiões de uma cidade ou sub-regiões de um Estado. Esse é um dos temais vitais da nossa discussão agora.
JC - Como os Estados podem agir de forma integrada?
NICOLELIS - Temos insistido para que os governos dos Estados do Nordeste adotem o nosso aplicativo Monitora Covid-19, que já tem 60 mil usuários no Nordeste, porque ele é uma forma de monitorar em tempo real o que está acontecendo, em nível de município, vizinhança da capital. Ele nos dá um quadro absolutamente real, baseado em autoreferenciamento clínico das pessoas. Nesse momento, seria fundamental que Pernambuco adotasse. Cinco Estados já aderiram ao Monitora: Sergipe, Bahia, Maranhão, Piauí e Paraíba. Nós tivemos notícias de que o Rio Grande do Norte, Alagoas e Ceará também estão se preparando para adotar. Mas ainda estamos sem notícia de Pernambuco. Eu já comecei a analisar os dados no fim de semana e você consegue ver onde estão os novos focos, baseado no georeferenciamento dos sintomas das pessoas.
JC - Esse aplicativo foi desenvolvido pelo comitê científico?
NICOLELIS - Na realidade, ele já vinha sendo desenvolvido pelo governo da Bahia, em colaboração com a Fiocruz. Quando o comitê foi instalado, nós adotamos como parte da nossa estratégia. Na Bahia, Sergipe, Piauí, Maranhão e agora na Paraíba, já existe o serviço de telemedicina. Quando a pessoa relata sintomas que a classificam como de alto risco para ter coronavírus, ela recebe o telefonema de um médico e tem uma consulta mais detalhada. O médico recomenda que ela fique em casa e tome certas medicações ou vá para um posto de saúde ou hospital mais perto dela. Além disso, os dados são coletados para que a gente possa ter uma análise estatística em tempo real e mandar isso para os governadores dos Estados. Também nos auxiliam a direcionar os trabalhos das Brigadas Emergenciais de Saúde, que nós esperamos que sejam efetivadas nos próximos dias. Então, você cria todo um sistema de monitoramento, uma sala de situação que recebe os dados em tempo real e realiza uma série de análises e entrega essas informações para quem vai coordenar o direcionamento de médicos, insumos e equipamentos para as localidades que estão tendo os focos (da doença). Para o comitê poder realmente ajudar com informações, sugestões e análises precisas seria importante que todos os Estados do Nordeste usassem o Monitora como sendo o seu aplicativo oficial. Cada Estado vai poder acessar não só os seus dados, mas os dados do Nordeste inteiro, com as análises que nós estamos fazendo. Então agiliza dramaticamente o tempo de reação e o tempo de decisão.
JC - Pernambuco e Ceará estão se alternando em primeiro lugar entre os mais atingidos pela doença no Nordeste. Há como apontar qual é o Estado em situação mais grave?
NICOLELIS - Nas estatísticas, nós temos três Estados que preocupam muito. Pernambuco, Ceará e o Maranhão. As curvas de Pernambuco e Ceará estão mais avançadas, em termos da inclinação exponencial, do número de casos e de fatalidades. O Maranhão tem um número muito grande de casos. Já é metade da quantidade de casos de Pernambuco e do Ceará. Mas você tem um crescimento que vem sendo notado na Bahia e também em Sergipe. Ao mesmo tempo, nós observamos, a partir da semana passada, que, das 187 sub-regiões do Nordeste, 112 apresentavam um número de notificações inferior a 50 casos. Isso dá, mais ou menos, 93% do Nordeste. Ocorre que, do dia 24 a 30 de abril, o número de municípios do Nordeste que tinham descrição de casos de coronavírus dobrou. Saiu de 437 para 736. Então, essas 112 sub-regiões são, na verdade, o nosso front da batalha no Nordeste. Se nós conseguirmos segurar a explosão de casos nessas sub-regiões, a gente consegue um resultado positivo. Pra você evitar a sobrecarga das UTIs nas capitais, você tem que ganhar essa batalha nessas sub-regiões e nas periferias das cidades.
JC - As Brigadas Emergenciais prevêem a convocação de médicos para atuar nas cidades do interior e nas periferias, levando informação e atendimento para a população. A sugestão do comitê é a de que uma parte desse contingente seja de médicos formados no exterior, mediante aprovação no Revalida. Mas o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, tem se colocado contra essa ideia. No último domingo, o senhor publicou, no seu Twitter, uma crítica dura a esse posicionamento do CFM, dizendo que é uma atitude corporativista e política. Há como superar esse impasse?
NICOLELIS - Vivemos uma guerra com perspectiva de perdermos dezenas de milhares de vidas. Numa guerra você tem que tomar medidas extraordinárias estratégicas. O nosso objetivo central é salvar vidas. Nesse fim de semana, como eu sou médico, eu reli o juramento que eu fiz, 36 anos atrás, que é o juramento de Hipócrates. Ele é a base que rege todo e qualquer documento sobre a ética da medicina no mundo. Eu reli e não encontrei em lugar nenhum algo que diga que o médico que foi graduado e teve o seu registro em qualquer lugar do mundo não pode ser convocado numa emergência como essa, a maior guerra biológica que o Brasil já enfrentou, para salvar vidas. Um médico formado em Buenos Aires, Paris, Madri, Lisboa, numa guerra, estando disponível, ele tem que ser chamado. Nós estamos numa batalha de vida ou morte. Nessa questão, eu não tenho nenhum receio. Mesmo porque a lei permite que as universidades estaduais façam esse processo. A revalidação pode ser feita em nível estadual.
JC - Então essa convocação de médicos estrangeiros pode ocorrer sem o aval do CFM?
NICOLELIS - Neste momento, é óbvio. Como eu disse no meu Twitter, se o presidente do CFM está tão preocupado, ele poderia se voluntariar para ir para as trincheiras no interior do Nordeste. Assim como os colegas que concordam com ele poderiam largar suas clínicas particulares e irem ajudar o povo do Nordeste, como Hipócrates fala no seu juramento. Outros países do mundo estão fazendo a mesma coisa. Desde que nós anunciamos as Brigadas, eu já recebi centenas de emails de médicos brasileiros formados no exterior interessados em participar desse enfrentamento. Se não fizermos isso, o mais rápido possível, vamos perder a luta. Nosso trabalho será empilhar corpos, diante do número explosivo de pessoas que, infelizmente, vão falecer.
JC - O Brasil caminha para ser o novo epicentro da covid no mundo?
NICOLELIS - Se você for ver as minhas previsões feitas em março, antes mesmo do comitê científico ser criado, eu já dizia que o Brasil dava toda a impressão de ser, depois dos Estados Unidos, o novo epicentro da crise mundial. Nos Estados Unidos, você vê uma estabilização do número de casos. Ainda não caiu, chegou num platô, com números ainda bem altos. Está migrando pelo País. Em Nova Iorque, os números estão caindo. E é bem claro para mim que o Brasil será o novo centro mundial da covid. Se você olhar e projetar as curvas, o Brasil tem uma subnotificação enorme, então os nossos números de casos reais devem ser de 10 a 12 vezes maiores do que o oficial. Nós estaríamos chegando a um milhão de infectados no País, possivelmente.
JC - E quanto à subnotificação do número de mortes?
NICOLELIS - Se você acompanhar os dados da Síndrome Respiratória Aguda Grave para o Brasil você vê um número muito grande. De acordo com a Fundação Oswaldo Cruz, 73% dos óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave são, provavelmente, casos de covid-19 não notificados. Certamente esse número de óbitos é muito maior, cinco a sete vezes maior, são as estimativas que eu ouvi. E, se você olhar para as curvas, mesmo com os dados oficiais, vai ver o quão rápido estamos aumentando o número de casos. A cada oito dias, nós estamos dobrando a quantidade de casos. Isso mostra claramente que a chance de nós passarmos ou chegarmos próximo dos Estados Unidos é real.
JC - Apesar desse cenário terrível, desde o início da pandemia, o Brasil tem enfrentado o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e uma falta de liderança e de ações articuladas por parte do governo federal. A gente vive uma crise política dentro da mais grave crise sanitária do mundo. Em que essa situação vai afetar no número de mortos no País?
NICOLELIS - Sem dúvida nenhuma, isso é um contribuinte inédito no mundo inteiro. Você não tem isso em lugar nenhum do mundo. O Brasil é o único País que enfrenta uma crise política, institucional no meio da pandemia. Eu estou dizendo, há mais de um mês, que é a interferência do pandemônio na pandemia. E esse pandemônio gera mortes. Você viu uma quantidade enorme de pessoas que negavam o coronavírus e vieram a falecer. Inclusive ontem (domingo) um médico em Mossoró (RN) ouviu um relato de uma pessoa que, aparentemente, não acreditava no isolamento social e veio a falecer. Esse é um problema gravíssimo. O mundo inteiro não entende. O Brasil está nas manchetes do mundo inteiro, como tendo que lidar com um governo federal que não assumiu a existência da maior crise sanitária do mundo. A negação disso e a falta de uma diretriz federal e de apoio aos Estados são um ônus histórico, que vai ficar na biografia de todas essas pessoas que estão impedindo que os Estados brasileiros tenham condições de receber auxílio do governo federal, em todos os níveis, desde financeiro, até em equipamentos, suporte e ajuda estratégica. É um ônus histórico. Realmente, como médico e como brasileiro, para mim, é chocante e deprimente, sentir que, em meio a esse caos sanitário, a gente ainda tem que perder tempo e perder vidas por causa dessa atitude irresponsável do governo federal e do presidente.
fonte;CORREIO DA BAHIA/REPRODUÇÃO 05/05/2020
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