Mesmo com decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendendo todas as reintegrações de posse contra indígenas durante a pandemia de Covid-19, o juiz federal Pablo Enrique Carneiro Baldivieso, da comarca de Eunápolis (BA), determinou o despejo de famílias da etnia pataxó da aldeia Novos Guerreiros, no território indígena não homologado Ponta Grande, entre os municípios de Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro, no sul do estado.
A decisão, publicada em 20 de agosto, deu prazo de cinco dias para os indígenas deixarem a área, que é reivindicada na Justiça pelos donos de um clube de aviação que ocupa um terço do território da aldeia.
O prazo venceu na última quarta-feira (26), data em que os moradores das outras cinco aldeias da Ponta Grande e também da Terra Indígena (TI) Coroa Vermelha, que passa por um processo de revisão de seu território, homologado em 1998, realizaram atos na aldeia Novos Guerreiros e na BR-367.
Quase 100 indígenas vivem na aldeia e podem ser despejados a qualquer momento. Em todo o território de Ponta Grande são cerca de 10 mil indígenas em seis aldeias. Já na TI Coroa Vermelha vivem cerca de 6 mil indígenas.
Sede da Justiça Federal -foto: Eunápolis - foto:reprodução
Segundo Thyara Pataxó, líder da aldeia Novos Guerreiros, os indígenas estão decididos a ficar no território e temem não só os conflitos em caso de uma ação de despejo, mas também as aglomerações que já foram e ainda podem ser provocadas pela medida judicial, em plena pandemia.
"Por volta de 10h30 um oficial de justiça veio até a aldeia, acompanhado de policiais federais, com a notificação, mas o cacique se negou a assinar e mandou que eles procurassem a Funai. Eles se retiraram, mas nossa preocupação é que podem voltar a qualquer momento e nós estamos reunidos e vamos resistir", disse.
A Defensoria Pública da União (DPU) na Bahia entrou com um recurso contra a decisão de reintegração de posse na última quarta (26).
O Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também informaram que pretendem acionar a Justiça contra a retirada das famílias indígenas do território.
A reportagem procurou a Funai e o Ministério Público Federal (MPF-BA), mas não obteve resposta até a conclusão deste texto. Não foi possível localizar o advogado do clube de aviação que disputa o terreno.
Demarcação em processo de revisão As lideranças pataxó alegam que a área em disputa, que corresponde a um terço da aldeia Novos Guerreiros, é parte da Terra Indígena (TI) Coroa Vermelha, ocupada pelos pataxó há gerações.
Segundo eles, o aeródromo recebeu autorização dos antigos caciques para operar dentro do território há cerca de 17 anos, com a condição de que, após a conclusão da demarcação da TI Coroa Vermelha, eles deixassem o local ou, ao menos, não passassem dali.
"Com o passar dos anos a nossa comunidade cresceu e, como essa era a aldeia mais afastada, só começou a ser ocupada recentemente, com o surgimento de novas famílias. Hoje são 24 famílias vivendo na aldeia Novos Guerreiros, que ganhou esse nome justamente por ser a área escolhida pelos caciques para a nova geração de pataxós construir suas casas", contou Thyara, 28, líder do grupo de mulheres da aldeia.
A convivência entre indígenas e empresários era pacífica até a construção de um quijeme, uma oca destinada a rituais, a cerca de 60 metros da pista de pouso.
"Nossos anciãos deixaram que eles usassem parte do nosso território e agora eles vêm querer nos retirar de uma área de 134 mil metros quadrados durante uma revisão de limites, no meio de uma pandemia. É absurdo", disse Thyara.
A TI Coroa Vermelha, que fica ao lado do território indígena Ponta Grande, foi homologada em 1998, mas os indígenas pediram a revisão dos limites, justamente para incluir as aldeias da Ponta Grande, que ficaram de fora da TI, mas são ocupadas pela mesma etnia, pataxó.
Em 2018 a justiça determinou que a Funai criasse um Grupo de Trabalho (GT) para a revisão dos limites da TI Coroa Vermelha. O GT chegou a ser criado, mas a revisão nunca foi concluída. Com a mudança de gestão na Funai, o processo ficou paralisado.
Os indígenas também reclamam de não terem sido informados com antecedência sobre a decisão de reintegração de posse, que foi tomada após uma audiência de conciliação entre os proprietários do clube de aviação, representantes do MPF e da Funai. Os pataxó não participaram da reunião.
"Não tínhamos noção jurídica, então esperávamos que a Funai defendesse nossos interesses, como sempre foi. Mas ela tem trabalhado mais em favor do branco do que do indígena", criticou Thyara.
Pandemia O risco de contaminação por Covid-19 também preocupa os pataxó. Somando aos casos da TI Coroa Vermelha, já são mais de 150 casos confirmados e dois óbitos entre os pataxó, segundo o boletim epidemiológico do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Bahia, polo base Porto Seguro. Em todo o Dsei Bahia, que inclui também a TI Barra Velha, eram 193 casos confirmados e quatro óbitos, até 26 de agosto.
A Novos Guerreiros é a única que não teve casos da doença até 26 de agosto. "Mas agora, com essa movimentação toda aqui, com certeza os primeiros casos vão aparecer. E estávamos em isolamento justamente para evitar que esse vírus chegasse aqui", lamentou Thyara.
Para o cacique Ararawe Pataxó, o despejo em meio a uma pandemia é uma medida irresponsável.
"Em tempo de pandemia o juiz quer nos colocar pra fora da nossa aldeia. Estamos aqui pedindo socorro porque, se essa liminar chegar, não temos para onde ir. Este é o nosso território consagrado e dado a nós por nossos ancestrais. Essa ação não mexe só com essas 24 famílias, mexe com todas as 2,5 mil famílias da Ponta Grande", disse.
No pedido de reintegração de posse feito pela DPU, o defensor regional Vladimir Correia alega que todas as reintegrações de posse contra indígenas devem ficar suspensas até que seja julgado o Recurso Extraordinário 1.017.365/SC, que definirá a posição da suprema corte sobre o direito originário dos povos indígenas sobre seus territórios, ou até que a pandemia do novo coronavírus acabe.
"Nenhum ato processual pode acontecer no âmbito dessas ações de reintegração de posse e nenhum ato processual nas ações de anulação de demarcação. Não pode ter despacho, audiência. Não pode haver movimentação processual. Portanto, a Justiça não pode pedir reintegração de posse", explica o assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto.
FONTE: por Mônica Prestes | Folhapress - 28/08/2020
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